Antes de ler a carta do
além, pensei ser importante colocar a experiência vivida por um
exorcista. Num dos raros momentos em que o demônio falou com o padre.
O padre dizia-lhe que o
mandaria de volta a um lugar bem quentinho que Deus preparou. O demônio
respondeu:
__ Não sabes de nada.
E continuou: ___ Não foi
Deus quem criou o inferno. Fomos nós. O inferno nem sequer passou pela cabeça
de Deus. Nunca esteve nos planos dEle.
Com os homens, Deus se
comunica por muitos modos. Além de ser a própria Sagrada Escritura a Carta
Magna de Deus aos homens, escrita e transmitida por homens autorizados, narra
ela muitas comunicações divinas feitas por visões, inclusive sonhos. Deus
continua a prevenir, ainda, por sonhos. É que sonhos não são sempre meros
sonhos sem base.
A Carta do Além transcrita
abaixo conta a história da condenação eterna de uma jovem. À primeira vista
parece uma história bastante romanceada. Bem consideradas, porém, as
circunstâncias, chega-se à conclusão de que ela não deixa de ter o seu fundo
histórico, como base do seu sentido moral e do seu alcance transcendental.
A carta em apreço foi
encontrada tal qual entre os papéis de uma freira falecida, amiga da jovem
condenada. Relata a freira os acontecimentos da existência da companheira como
fatos históricos sabidos e verificados, e sua sorte eterna comunicada em sonho.
A Cúria diocesana de Treves (Alemanha) autorizou sua publicação como sumamente
instrutiva.
A Carta do Além apareceu
primeiro em livro de revelações e profecias, juntamente com outras narrações.
Foi o R. Pe. Bernhardin Krempel C. P., doutor em teologia, quem a publicou em
separado e quem lhe emprestou mais autoridade, provando-lhe, nas Anotações, a
absoluta concordância com a doutrina da Igreja Católica sobre o assunto.
No Apêndice seguem alguns
esclarecimentos complementares sobre o Inferno. O primeiro ponto assinala dois
trabalhos literários que por caminhos diferentes chegam à mesma conclusão que o
Inferno deve existir e que de fato existe. Nos seguintes pontos expõe-se
sumariamente quais são os que trilham o caminho do Inferno e quais os meios que
temos à mão para nos salvar do maior perigo da vida, de cair no Inferno.
Informações preliminares
Entre os papéis deixados
por uma jovem que morreu num convento como freira, foi encontrado o seguinte
depoimento:
"Tinha eu uma amiga.
Quer dizer, éramos mutuamente achegadas como companheiras e vizinhas de
trabalho no mesmo escritório M.
Quando mais tarde Âni se
casou, nunca mais a vi. Desde que nos conhecêramos, reinava entre nós, no
fundo, mais amabilidade que amizade.
Por isso eu sentia dela
pouca falta, quando, após seu casamento, ela foi morar no bairro elegante das
vilas, bem longe do meu casebre.
Quando no outono de 1937
passei minhas férias no lago Garda, minha mãe escreveu-me, em meados de
setembro: "Imagine, Âni N. morreu. Num desastre de automóvel perdeu a vida.
Ontem foi enterrada no cemitério do Mato".
Essa notícia espantou-me.
Sabia eu que Âni nunca fora propriamente religiosa. Estava ela preparada,
quando Deus a chamou de repente?
Na outra manhã assisti na
capela da casa do pensionato das irmãs, onde eu morava, à santa missa em sua
intenção. Rezava fervorosamente por seu descanso eterno e nessa mesma intenção
ofereci também a Santa Comunhão.
Mas o dia todo eu sentia
certo mal estar, que foi aumentando mais ainda pela tarde.
Dormia inquieta. Acordei de
repente, ouvindo como se sacudida a porta do quarto. Liguei a luz. O relógio,
no criado mudo, marcava meia noite e dez minutos. Nada, porém, eu podia ver.
Nenhum barulho havia na casa. Apenas as ondas do lago Garda batiam,
quebrando-se monotonamente, no muro do jardim do pensionato. De vento, nada eu
ouvia.
Tinha eu, todavia, a
impressão de que ao acordar eu tivesse percebido, além das batidas na porta, um
ruído como que de vento, parecido ao do meu chefe de escritório, quando mal
humorado me atirava uma carta amolante sobre a escrivaninha.
Refleti um momento, se
devia levantar-me.
Ah! Tudo não passa de
cisma, disse-me resoluta. Não é senão produto de minha fantasia sobressaltada
pela notícia da morte. Virei-me, rezei alguns Pai-Nossos pelas almas, e
adormeci de novo.
Sonhei então que me
levantava de manhã às 6 horas, indo à capela da casa. Quando abri a porta do
quarto, dei com o pé num maço de folhas de carta. Levantá-las, reconhecer a
escrita de Âni e dar um grito, foi coisa de um segundo.
Tremendo, segurei as folhas
nas mãos. Confesso que fiquei tão apavorada, que nem podia proferir o
Pai-Nosso. Fiquei presa de uma quase sufocação. Nada melhor que fugir dali e
ir-me para o ar livre. Arranjei malmente os cabelos, pus a carta na bolsa e saí
à pressa de casa.
Fora, subi o caminho que
seguiu tortuoso para cima, por entre oliveiras, loureiros e quintas de vilas, e
para além da mundialmente célebre estrada "Gardesana".
A manhã despontava
radiante. Nos outros dias eu parava a cada cem passos, encantada pela magnífica
vista que me ofereciam o lago e a magnificamente bela ilha Garda. O suavíssimo
azul da água refrescava-me; e como uma criança olha admirada para o avô, assim
eu olhava sempre admirada de novo o cinzento monte Baldo que se ergue na margem
oposta do lago, crescendo de 64 m acima do nível do mar até 2.200 m de altura.
Hoje eu não tinha olhos
para tudo isso. Depois de caminhado um quarto de hora, deixei-me cair
maquinalmente sobre um banco encostado em dois ciprestes, onde, no dia
anterior, eu tinha lido prazerosamente "A donzela Teresa". Pela
primeira vez eu via nos ciprestes símbolos da morte, coisa que neles nunca
reparava no Sul, onde tão freqüentemente se encontram.
Peguei a carta. Faltava-lhe
a assinatura. Sem a mínima dúvida era a escrita de Âni. Nem mesmo faltavam nela
a grande "S"-voluta, nem o "T" francês, a que se havia
acostumado no escritório para irritar o Sr. G.
O estilo não era o dela.
Pelo menos não falava como de costume. Sabia ela tão amavelmente conversar e
rir com seus olhos azuis e seu gracioso nariz.
Somente quando discutíamos
assuntos religiosos é que ela se tornava mordaz e caía no rude tom da carta.
(Eu própria entrei agora na excitada cadência da mesma).
Eis aí.
A CARTA DO ALÉM DE ANI, V.,
Palavra por palavra, tal qual a li no sonho:
"Clara! Não rezes por
mim. Sou condenada. Se te comunico isso e se a respeito de algumas
circunstâncias da minha condenação te dou pormenorizadas informações, não
creias que eu o faça por amizade. Aqui não amamos a ninguém mais. Faço-o, como
"Parcela daquele Poder que sempre quer o Mal e sempre produz o Bem".
Em verdade, eu queria
também ver-te aqui, onde eu para sempre vim parar. [S. Tomas de Aquino, Summa
Theológica (S. Th.) Supplementum (Suppl.) q. 98, a. 4: "Os réprobos querem
que todos os bons sejam condenados".
Não estranhes esta minha
intenção. Aqui pensamos todos da mesma forma. A nossa vontade está petrificada
no mal - no que vós chamais "mal". Mesmo quando fazemos algo de
"bem", como eu agora, descerrando-te os olhos sobre o Inferno, não o
fazemos com boa intenção.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 1: "Neles o
autodeterminado querer é sempre de todo perverso".
Lembra-te ainda:
Fez 4 anos que nos
conhecemos, em M. Tinhas 23 anos e já trabalhavas no escritório havia meio ano,
quando lá entrei.
Tiravas-me bastante vezes
de embaraços; davas-me a mim, principalmente, freqüentes bons avisos. Mas que é
que se chama "bom"!
Eu louvava, então tua
"caridade". Ridículo... Tuas ajudas provinham de pura ostentação,
como, aliás, eu já suspeitava.
Nós aqui não reconhecemos
bem algum em ninguém!
Conheceste minha mocidade.
Cumpre preencher, aqui, certas lacunas.
Conforme o plano de meus
pais, eu não devia nunca haver existido. Aconteceu-lhes um descuido, a desgraça
da minha concepção.
Minhas duas irmãs já tinham
15 e 14 anos, quando eu vim à luz.
Oxalá nunca eu tivesse
nascido! Oxalá pudesse eu agora aniquilar-me, fugir a esses tormentos! Não há volúpia
comparável à de acabar minha existência, como se reduz a cinzas um vestido, sem
mesmo deixar vestígios.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 3, r. ib. ad 3:
"Enquanto a
inexistência liberta de uma vida de terríveis castigos, seria ela para os
condenados um bem maior do que sua miserável existência... Assim desejam a não
existência."]
Mas é preciso que eu
exista; é preciso que eu seja tal como eu me tenho feito: com a falha total da
finalidade da minha existência.
Quando meus pais, ainda
solteiros, mudaram-se da roça para a cidade, perderam o contato com a Igreja.
Assim era melhor.
Mantinham relações com
pessoas desligadas da religião. Conheceram-se num baile e viram-se
"obrigados" a casar meio ano depois.
No ato do casamento pegaram
neles só algumas gotas de água benta, suficientes apenas para atrair mamãe à
missa domingueira raríssimas vezes por ano.
Nunca ela me ensinava a
rezar direito. Esgotava-se nos cuidados de cada dia, ainda que a nossa situação
não fosse ruim.
Semelhantes palavras como
rezar, missa, água benta, igreja, só escrevo com íntima repugnância, com
incomparável nojo. Detesto profundamente os freqüentadores de igreja, assim
como todos os homens e coisas em geral.
Tudo se nos torna tormento.
Cada conhecimento recebido ao falecer, cada lembrança da vida e do que sabemos,
se transforma numa flama incandescente.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 7, r.:
"Nada há nos réprobos,
que não lhes seja matéria e causa de tristeza... Assim dirigindo sua atenção
sobre coisas conhecidas".]
E todas essas lembranças
nos mostram aquele medonho lado que fora uma graça que desprezamos. Como isso
atormenta! Não comemos, não dormimos, nem andamos com as pernas.
Espiritualmente acorrentados, nós réprobos, fitamos estarrecidos a nossa vida
falhada, uivando e rangendo os dentes, atormentados e cheios de ódio.
Ouves tu? Bebemos aqui ódio
como água. Odiamo-nos mutuamente.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 4, r.: "Nos
réprobos domina um ódio total".]
Mais do que tudo, odiamos a
Deus. Procuro tornar-te isso compreensível.
Os bem aventurados no Céu
devem amá-Lo. Porque O vêem desveladamente em Sua arrebatadora beleza. Isso
torna-os indescritivelmente felizes. Sabemos isso e é esse conhecimento que nos
torna furiosos.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 9, r.:
"Ante o dia do juízo
universal sabem os réprobos que os bem aventurados se encontram numa inefável
glória."]
Os
homens, na terra, que conhecem Deus pela criação e revelação podem amá-Lo; não
são forçados a fazê-lo.
O crente - furiosa eu te
digo aqui - que contempla, meditando, cristo estendido na cruz, O amará.
Mas a alma de quem Deus se
acerca, fulminante, como vingador e justiceiro, como Quem foi repelido, essa O
odeia, como nós O odiamos.[S. Th. Suppl. q. 98, a. 8, ad 1, ib. ad 5, r.:
"Os réprobos só
enxergam em Deus o castigador e impedidor (do mal, que desejam ainda fazer).
Mas como só O enxergam no castigo, efeito da sua justiça, odeiam-nO".]
Odeia-O com toda a força de
sua má vontade. Odeia-O eternamente. Em virtude da deliberada resolução de
ficar afastada de Deus, com que terminou a vida terrena. E essa perversa
vontade, não podemos revogá-la mais, nem jamais quereremos revogá-la.
Compreendes tu agora por
que o Inferno há de ser eterno? Porque a nossa obstinação nunca derrete, nunca
termina.
Forçada acrescento que Deus
é propriamente ainda misericordioso para conosco. Disse "forçada". A
razão é esta: ainda que voluntariamente escreva esta carta, não me é possível
mentir, como eu bem queria. Assento no papel muitas informações contrariamente
à minha vontade. Também a corrente de injúrias que queria despejar, tenho de
reengolí-la.
Deus era misericordioso
para conosco pelo que não deixou a nossa vontade produzir e efetivar na Terra
todo o mal que desejávamos fazer. Se Ele nos tivesse deixado a esmo, teríamos
aumentado muito a nossa culpa e castigo. Deixou-nos morrer prematuramente -
como a mim - ou introduziu circunstâncias atenuantes.
Agora Ele se nos torna
misericordioso por que não nos obriga a nos aproximar Dele, porém a ficarmos
neste lugar distante do Inferno, diminuindo-nos o tormento.[S. Th. I, q. 21, a.
ad. 1.:
"Na condenação dos
réprobos aparece a misericórdia de Deus... , no que os castiga menos do que
merecem".
- Em outro lugar nota o
santo doutor da Igreja, que isso é o caso sobretudo com os que neste Mundo eram
misericordiosos para com os outros (S. Th. Suppl. q. 99, a. 5, ad 1.)]
Cada passo mais perto de
Deus dar-me-ia maior sofrimento do que a ti um passo mais perto de uma
fogueira.
Ficaste espantada um dia
quando te contei, em passeio, o que meu pai me dissera alguns dias antes da
minha primeira comunhão:
"Cuida, Anita, que
ganhes bonito vestido; o mais não passa de burla".
Quase me teria mesmo
envergonhado do teu espanto. Agora rio-me disso. O mais bem feito, em toda essa
burla, era permitir-se a comunhão apenas aos 12 anos. Eu já estava, então,
assaz possuída do prazer do mundo, que postergava facilmente tudo quanto era
religião, e não levei a comunhão a sério.
O novo costume de deixar as
crianças receberem a comunhão aos 7 anos põe-nos furiosos. Envidamos todos os
meios para burlar isso, fazendo crer que para comungar cumpre haver
compreensão. É preciso que as crianças já tenham cometido antes alguns pecados
mortais. O "branco" Deus será menos prejudicial, então, do que
recebido quando a fé, a esperança e o amor, frutos do batismo - escarro sobre
tudo isso - ainda estão vivos no coração da criança.
Lembras-te que já sustentei
esse mesmo ponto de vista na Terra?
Torno a meu pai. Ele brigava
muito com minha mãe. Raras vezes te frisei isso: tinha vergonha. Ah! que é
vergonha? Coisa ridícula! A nós tudo nos é indiferente.
Meus pais não dormiam mais
no mesmo quarto. Eu dormia com minha mãe, papai no quarto ao nosso lado, aonde
podia voltar a qualquer hora da noite. Ele bebia muito e gastou a nossa
fortuna. Minhas irmãs estavam empregadas e precisavam do seu próprio dinheiro,
como diziam. Mamãe começou a trabalhar. No último ano de sua amargurada vida,
papai batia em mamãe muitas vezes, quando não lhe queria dar dinheiro. Para mim
ele era sempre bonzinho. Um dia, contei-te isso e ficastes escandalizada sobre
o meu capricho - e de que não te escandalizastes em mim? - um dia, pois,
devolveu duas vezes sapatos novos, porque a forma dos saltos não me era
bastante moderna.[Os assinalados traços sobre o pai de Âni e as ocorrências
subsequentes são fatos.]
Na noite em que uma
apoplexia vitimou meu pai mortalmente, aconteceu algo que nunca te confiei, por
temer desagradável interpretação de tua parte. Hoje, porém, deves sabê0lo. Esse
fato é memorável, porque foi pela primeira vez que o meu atual espírito
carrasco se acercou de mim.
Eu dormia no quarto de
minha mãe. Suas respirações regulares denotavam seu profundo sono.
De repente ouvi chamar meu
nome. Uma voz desconhecida murmurou: "Que acontecerá, se teu pai
morrer?"
Eu não amava mais meu pai,
desde que ele começara a maltratar minha mãe. Já não amava propriamente
ninguém: só me prendia a alguns que eram bons para mim. - Amor sem intuito
natural existe quase só nas almas que vivem em estado de graça. Nele eu não
vivia.
Respondia assim ao
misterioso interlocutor: "Com certeza ele não morre".
Após breve intervalo, ouvi
a mesma bem compreendida pergunta sem me incomodar de saber, de onde provinha.
"Qual o que! Ele não
está morrendo" escapou-me casmurra.
Pela terceira vez fui
interrogada: "Que acontecerá se teu pai morrer?"
De relance me surgiu no
espírito como meu pai freqüentes vezes voltava para casa meio bêbado, ralhando
e brigando com mamãe e quanto ele nos envergonhava perante os vizinhos e
conhecidos!
Gritei, então embirrada:
"Pois não, é quanto merece! Que morra!"
Depois, ficou tudo quieto.
Na manhã seguinte, quando
mamãe foi para arrumar o quarto de papai, encontrou a porta fechada. Ao meio
dia abriram-na à força. Papai encontrava-se meio vestido em cima da cama -
morto, um cadáver. Ao procurar cerveja na adega, deve se ter resfriado. Desde
muito, estava adoentado. - (Será que Deus fez depender da vontade de uma
criança, a quem o homem demonstrava bondade, o conceder-lhe mais tempo e
ocasião para se converter?)
Marta K. e tu me fizestes
ingressar na associação das moças. Nunca te escondi que achava as instruções
das duas diretoras, duas senhoras X., assaz vigaristas. Achava os jogos
bastante divertidos. Conforme sabes, cheguei, em breve, a sustentar nele papel
preponderante. Isso era o que me lisonjeava. Também as excursões me agradavam.
Deixei-me até levar algumas vezes a confessar-me e comungar. Propriamente não
tinha nada para confessar. Pensamentos e sentimentos comigo não entravam em
conta. Para coisas piores eu não estava madura ainda.
Admoestaste-me um dia:
"Âni, se não rezares
mais, perder-te-ás".
Eu rezava realmente muito
pouco; e também só contrariada, de má vontade.
Tinhas tu, sem dúvida, razão.
Todos os que no Inferno ardem, não rezaram, ou não rezaram bastante. A oração é
o primeiro passo para Deus. Sempre decisivo. Mormente a oração para aquela que
é a mãe do Cristo, cujo nome não nos é lícito pronunciar. A devoção a Ela
arranca ao demônio inúmeras almas, que os pecados lhe teriam infalivelmente
atirado às mãos.
Furiosa continuo - por ser
forçada: rezar é o mais fácil que se pode fazer na Terra. Justamente a essa
facilidade Deus ligou a salvação.
A quem reza com a
assiduidade, Deus dá, paulatinamente, tanta luz e fortalece-o tanto que o mais
afogado bode de pecador se pode definitivamente levantar pela oração, ainda que
esteja submerso na lama até o pescoço.
Nos últimos anos da vida eu
deveras não rezava mais e assim me privava das graças, sem as quais ninguém se
pode salvar.
Aqui não recebemos mais
graça alguma. Mesmo que a recebêssemos, com escárnio a rejeitaríamos. Todas as
vacilações da existência terrestre acabaram no além.
Na vida terrena pode o
homem passar do estado de pecado para o estado de graça. Da graça pode cair no
pecado. Freqüentes vezes caí por fraqueza; raramente por maldade. Com a morte,
terminou essa inconstância do sim e do não, caindo e levantando-se. Pela morte,
cada um entra no estado final, fixo e inalterável.
À medida que avança a
idade, tornam-se menores os saltos. É verdade que, até à morte, a gente se pode
converter a Deus ou virar-Lhe as costas. No morrer se decide o homem,
entretanto, com as últimas tremuras da vontade, maquinalmente, tal como se
acostumara na vida.
Bom ou mau hábito tornou-se
uma segunda natureza. Esta o arrasta no derradeiro momento. Assim também
arrastou à mim. Anos inteiros eu vivera afastada de Deus. Consequentemente,
decidi-me no último chamamento da graça, contra Deus. Não que o haver pecado
muitas vezes me fosse uma fatalidade, mas porque eu não me queria mais
levantar.
Repetidas vezes me
admoestaste a assistir à pregação e a ler livros devotos. Eu escusava-me
regularmente com a falta de tempo. Havia eu de aumentar ainda mais a minha
incerteza íntima?
Cumpre-me aliás afirmar:
Quando cheguei a esse ponto crítico, pouco antes da minha saída da associação
das moças, ter-me-ia sido muito difícil enveredar por outro caminho. Sentia-me
insegura e infeliz. Diante da minha conversão, levantou-se um paredão. Deves
tê-lo desapercebido. Tu o tinhas imaginado tão fácil, quando uma vez me
disseste:
"Faça, pois, uma boa
confissão, Âni, e tudo ficará bem".
Eu suspeitava que assim
fosse. Mas o mundo, o demônio e a carne já me seguravam nas suas garras.
Na atuação do demônio eu
não acreditava nunca. Agora atesto que, a pessoas como eu então era, o demônio
influencia poderosamente.A influência dos maus espíritos encerra-se nos
apelidos "demônio" ou "diabo". Como comprovação da sua
existência bastam dois textos da S. Escritura:
"Irmãos, sede sóbrios
e vigiai! Vosso inimigo, o demônio, anda por aí como um leão rugindo e
procurando a quem puder devorar".(1 Petr. 5, 8).
O rugir não se refere ao
que satanás faz muito alarme com as suas tentações, porém à avidez com que ele
nos procura perder. - S. Paulo escreve aos Efésios (*, 12):
"Ponde a armadura de
Deus, para que possais resistir às astúcias do demônio. Nossa luta não é contra
carne e sangue (homens), porém contra os poderes dos tenebrosos dominadores
deste Mundo e contra os maus espíritos dos ares."
Só muitas orações alheias e
as minhas próprias, juntamente com sacrifícios e sofrimentos, teriam conseguido
arrancar-me dele.
E isso deveras só
paulatinamente. Poucos possessos. O demônio não pode tirar o livre arbítrio
àqueles que se entregam à sua influência. Contudo, como castigo de sua
apostasia quase total de Deus, Este permite que o "Mau" neles se
aninhe.
Odeio também o demônio.
Todavia gosto dele, porque ele procura perder-vos: ele e seus auxiliares, os
anjos caídos com ele desde os princípios do tempo. Há miríades. Vagueiam pela
terra inúmeros como enxames de moscas, sem que sejam suspeitados.[S. Th. Suppl.
q. 98, a. 6, ad 2:
"Não é tarefa dos
homens condenados, perderem e tentarem outros, porém dos demônios."
A nós homens réprobos não
nos incumbe de vos tentar; isso cabe aos espíritos caídos.
Aumentam, sim, ainda mais
os seus tormentos toda vez que arrastam uma alma humana ao Inferno. Mas de que
não é capaz o ódio![S. Th, q. 98, a. 4, ad 3:
"O crescente número
dos réprobos aumenta ainda os sofrimentos de todos. Mas são de tal modo cheios
de ódio e inveja, que antes querem sofrer mais com muitos, do que menos
sozinhos."
Ainda que eu andasse por
veredas tortuosas, Deus me procurava. Eu preparava o caminho à graça, por
serviços de caridade natural, que por inclinação de minha índole, não raras
vezes prestava.
Às vezes atraía-me Deus
para uma Igreja. Lá eu sentia certa nostalgia. Quando cuidava da minha mãe
doente, apesar do meu trabalho no escritório durante o dia, e sacrificava-me
realmente um tanto, atuavam sobre mim poderosamente essas atrações de Deus.
Uma vez - foi na capela do
hospital, aonde me levaste no tempo livre de meio dia - fiquei tão
impressionada, que me encontrei a um passo apenas da minha conversão. Eu
chorava.
Em seguida, porém, vinha o
prazer do mundo derramar-se, como uma torrente, por sobre a graça. Os espinhos
aforaram o trigo. Com a explicação de que religião é sentimentalismo conforme
sempre se dizia no escritório, lancei também essa graça, como outras, debaixo
da mesa.
Repreendestes-me um dia
que, em vez de genuflexão, fiz numa igreja uma ligeira inclinação da cabeça.
Tomastes isso como preguiça e não parecias suspeitar de que, já então, não
acreditava mais na presença de Cristo no Sacramento. Agora creio nela, porém só
naturalmente, como se acredita em tempestade, cujos sinais e efeitos se
percebem.
Nesse ínterim, havia-me
arranjado, eu própria, uma religião. Agradou-me a opinião generalizada no
escritório, de que, após a morte, a alma voltaria para este Mundo em outro ser
e passaria por outros e mais outros seres, numa sucessão sem fim.
Com isso liquidei o
angustiante problema do além e imaginava tê-lo tornado inofensivo.
Por que não me lembraste a
parábola do gozador rico e do pobre Lázaro, em que o narrador, Cristo,
imediatamente após a morte, mandou um para o Inferno, o outro para o Paraíso?
Mas o que terias conseguido? Nada mais do que com tuas demais palavras beatas.
Aos poucos eu própria arranjei
um deus: bem privilegiado para se chamar deus; a mim bastante longe para não me
obrigar a relações com ele; assas confuso, para se transformar, à vontade e sem
mudar de religião, num deus panteístico ou até tornar-me orgulhosa deísta.
Esse "deus" não tinha
um céu para me galhardear nem inferno para amedrontar-me. Deixei-o em paz.
Nisso consistia a minha adoração a ele.
No que se ama, acredita-se
facilmente. No curso dos anos tinha-me eu assaz persuadido da minha religião.
Vivia-se bem com ela, sem que ela me incomodasse.
Só uma coisa lhe teria
quebrado a nuca: uma dor profunda, prolongada. Mas este sofrimento não veio.
Compreende agora:
"A quem Deus ama, Ele
castiga!"
Era um dia de estio, em
julho, quando a associação das moças organizava uma excursão para A. Gostava eu
sim das excursões. Mas não das beatarias anexas!
Outra imagem, diferente da
de Nossa Senhora das Graças de A., estava, desde pouco, no altar do meu
coração. O grã-fino Max N. do armazém ao lado. Pouco antes conversáramos
divertidamente algumas vezes. Convidara-me, nessa ocasião, para fazermos uma
excursão naquele mesmo domingo. A outra com que costumava andar, estava no
hospital.
Reparara, sim, que eu tinha
deitado um olhar sobre ele. Mas eu não pensava ainda em casar-me com ele. Era
afortunado, porém amável demais para com muitas e quaisquer mocinhas; até então
eu queria um homem que me pertencesse exclusivamente, como única mulher. Certa
distância sempre me era própria. [Isso era verdade. Com toda a sua indiferença
religiosa Âni tinha algo de nobre em seu ser. Espanto-me de que também pessoas
"honestas" possam cair no Inferno, se são assaz desonestas para
fugirem do encontro com Deus]
Nessa excursão, Max
cumulou-me de todas as amabilidades. Conversações de beatas é que não tivemos,
como vocês.
No outro dia, no
escritório, repreendestes-me porque não vos acompanhei até A. Contei-te os meus
divertimentos domingueiros.
Tua primeira pergunta era:
"Estivestes na
missa?"
Louca! Como podia assistir
à missa, desde que combinamos a saída para 6 horas! Lembras-te, ainda, que
juntei excitada:
"O bom deus não é tão
mesquinho como os vossos padrecos?"
Agora, cumpre-me
confessar-te que, apesar de sua infinita bondade, Deus toma tudo mais a sério
do que os padres.
Após esse primeiro passeio
com Max, assisti mais uma só vez à vossa reunião. Na solenidade de Natal.
Certas coisas me atraíam. Mas interiormente, já estava apartada de vocês.
Cinemas, bailes, excursões,
seguiam-se. Brigávamos às vezes, Max e eu, mas eu sabia prendê-lo sempre a mim.
Mui desagradável me foi a
rival que, de volta do hospital, se comportava furiosamente. Propriamente a meu
favor. Minha calma distinta causou grande impressão a Max e obrigou-lhe,
afinal, a decisão de me preferir.
Eu sabia denegri-la,
rebaixá-la. Falando com calma: por fora, realidades objetivas; por dentro,
atirando peçonha. Semelhante sentimentos e insinuações conduzem rapidamente ao
Inferno. São diabólicos, no verdadeiro sentido da palavra.
Por que te conto isso? Para
constar como fiquei definitivamente livre de Deus.
Para esse afastamento não
foi preciso que eu chegasse com Max muitas vezes às últimas familiaridades.
Compreendi que me rebaixaria aos seus olhos, se me deixasse esvaziar antes do
tempo. Por isso me retinha, vedava.
Realmente estava eu sempre
pronta para tudo que achava útil. Cumpria-me conquistar Max. Para isso nada
achava caro de mais. Amamo-nos aos poucos, pois que ambos possuíamos valiosas
qualidades que podíamos apreciar mutuamente. Fui talentosa e tornei-me hábil e
conversadora. Cheguei, assim, a prender Max nas mãos, segura de que o possuía
sozinha, pelo menos nos últimos meses antes do casamento.
Nisso consistia minha
apostasia de Deus, em fazer de uma criatura o meu deus. Em coisa alguma pode
isso realizar-se tão plenamente como entre pessoas de diferentes sexo, se o
amor se afoga na matéria. Isso torna-se seu encanto, seu aguilhão e seu veneno.
A "adoração" que eu me prestava em Max, tornou-se-me uma religião
vivida..
Era no tempo quando, no
escritório, tão virulentamente eu caia em cima das corridas à igreja, dos
padrecos, do murmurejar de rosário e das demais bugigangas.
Emprenhastes-te, mais ou
menos inteligentemente, em proteger tudo isso; aparentemente sem suspeitares de
que para mim, em última análise, não se tratava dessas coisas, mas propriamente
de ponto de apoio contra minha consciência que eu estava procurando - dele eu
precisava ainda - para justificar racionalmente a minha apostasia.
No fundo eu vivia revoltada
contra Deus. Tu não percebias isso. Sempre me consideravas ainda católica. Como
tal, queria eu também ser chamada; até mesmo pagava a contribuição para a
igreja. Certa "ressalva" não me podia fazer mal, pensava eu.
Por mais certas que às
vezes fossem tuas respostas, de mim ressaltavam, porque tu não devias ter
razão. Em face dessas nossas relações entrecortadas a dor da nossa separação
era pequena, quando meu casamento nos distanciou.
Antes do meu casamento,
confessei-me e comunguei mais essa vez. Era uma formalidade. Meu homem pensava
como eu. De resto, por que não haveríamos de satisfazê-la? Cumprimo-la como
qualquer outra formalidade.
Vós o chamais
"indigno". Após aquela "indigna" comunhão eu tinha mais
sossego de consciência. Era essa a última.
Nossa vida matrimonial
decorria, em geral, em boa harmonia. Em quase todos os pontos tínhamos a mesma
opinião. Também nisso: não nos queríamos impor o encargo de filhos. No fundo,
meu marido desejava ter um - naturalmente não mais. Eu soube arrancar-lhe,
finalmente, essa idéia. Eu gostava mais de vestidos e mobílias finas, de
tertúlias de chá, de passeios de automóvel e de semelhantes divertimentos.
Era um ano de prazeres
terrenos entre o casamento e minha repentina morte.
Cada domingo passeávamos de
automóvel ou visitávamos parentes de meu esposo. (De minha mãe eu me
envergonhava então). Esses nadavam bem como nós, na superfície da existência.
Interiormente, porém, nunca
me sentia deveras feliz. Algo roía-me sempre na alma. Eu desejava que pela
morte, a qual sem dúvida havia de demorar muito tempo ainda, tudo acabasse.
Mas é como em criança eu
ouvira uma vez falar, em sermão, que deus recompensa já neste Mundo o bem que
alguém pratica. Se não pode recompensá-lo no outro mundo, fá-lo na Terra.
Sem o esperar, recebi uma
herança (da tia Lote). Meu marido teve a sorte de ver o seu salário consideravelmente
aumentado. Assim pude instalar mimosamente a nossa casa nova.
Minha religião estava às
últimas, como um vislumbre do ocaso no firmamento longínquo. Os bares e cafés
da cidade e os restaurantes por onde passávamos nas viagens, não nos aproximaram
de Deus.
Todos os que lá
freqüentavam, vivam como nós: de fora para dentro, não de dentro para fora.
Visitando uma célebre
catedral, nas viagens de férias, procurávamos deleitar-nos com o valor
artístico das obras primas. O sopro religioso que irradiavam, mormente as da
Idade Média, eu sabia neutralizá-lo, escandalizando-me em qualquer
circunstâncias da visita. Assim, a um irmão leigo que nos conduzia, eu
criticava o estar um tanto sujo e desajeitado; criticava o comércio de piedosos
monges que fabricavam e vendiam licor; criticava as eternas badaladas dos sinos
chamando para igrejas, onde se trata apenas de dinheiro.
Assim eu conseguia afastar
de mim a graça, cada vez que me batia à porta.
Mormente deixava meu mau
humor derramar-se livremente sobre tudo que tratava de antigas representações
do Inferno em livros, cemitérios e outros lugares, onde se viam os demônios
fritarem as almas em fogo vermelho ou amarelo, e seus sócios, de cauda
comprida, trazerem-lhes mais e mais vítimas.
Clara, o Inferno pode ser
mal desenhado, porém nunca ser exagerado.
Sobretudo escarnecia eu
sempre do foto do Inferno. Lembras-te como numa conversa sobre isso eu te meti
um fósforo aceso debaixo do nariz burlando: "É assim que cheira!"
Tu apagaste tão logo a
chama. Aqui ninguém a extingue. Digo-te mais: o fogo de que fala a Bíblia, não
significa tormento de consciência. Fogo significa fogo. Cumpre entendê-lo em
sentido real, quando Aquele declarou: "Afastai-vos de mim, vós, malditos,
ide para o fogo eterno". Literalmente!
Como pode o espírito ser
tocado pelo fogo material? Perguntas.
Como então pode, na Terra,
tua alma sofrer, segurando teu dedo na chama?
Tua alma também não se
queima, mas que dor tem de aturar o homem todo!
Semelhantemente estamos nós
aqui presos ao fogo em nosso ser em nossas faculdades. Nossa alma fica privada
do seu vôo natural; não podemos pensar nem querer o que queremos.[S. Th. Suppl.
q. 70, a. 3, r.:
"O fogo do Inferno
atormenta o espírito pelo que o impede de executar o que quer; não pode atuar
onde quer e quanto quer."]
Não procures esclarecer o
mistério contrário às leis da natureza material: o fogo do Inferno queima sem
consumir.
O nosso maior tormento
consiste em que sabemos exatamente que nunca veremos Deus.
Quanto pode torturar o que
na terra nos era indiferente! Enquanto a faca está em cima da mesa, deixa-te
fria. Vês-lhe o fio, porém não o sentes. Mas entra a faca na carne e gritarás
de dor.
Agora sentimos a perda de
Deus; antes só a vimos.
["A separação de Deus
é um tormento tão grande como Deus"
(Frase atribuída a S.
Agostinho. Cf. Houdry, Biblioteca concionatorum - Veneza, 1786, vol. 2, sob
Infernus, § 4, p. 427)]
Todas as almas não sofrem
igualmente. Quanto mais frívolo, maldoso e decidido alguém foi no pecar, tanto
mais lhe pesa a perda de Deus, e tanto mais torturado se sente pela criatura
abusada.
Os católicos condenados
sofrem mais do que os de outra crença, porque receberam e desaproveitaram, em
geral, mais luzes e mais graças.
Quem sabia mais, sofre mais
do que aquele que menos conhecimentos tinha.
Quem pecou por maldade
sofre mais do que aquele que caiu por fraqueza.
Mas nenhum sofre mais do
que mereceu. Oxalá isso não fosse verdade, para que eu tivesse motivo para
odiar!
Tu me disseste um dia:
ninguém cai no Inferno sem que o saiba. Foi isso revelado a uma santa. Ria eu
disso, no entanto me entrincheirava atrás desta reflexão: nesse caso me ficaria
suficiente tempo para me converter - assim eu pensava no íntimo.
O enunciado calha. Antes do
meu fim repentino, de certo não conhecia o Inferno tal qual é. Nenhum ente
humano o conhece. Mas eu estava exatamente inteirada disso: Se tu morreres,
entrarás na eternidade como revoltada contra Deus. Suportarás as conseqüências.
Conforme declarei já, não
voltei atrás, mas perseverei na mesma direção, arrastada pelo costume, com que
os homens agem tanto mais calculada e regularmente, quanto mais velhos ficam.
Minha morte ocorreu do
seguinte modo:
Há uma semana - falo de
acordo com a vossa contagem, porque calculada pelas dores, eu poderia já estar
ardendo no Inferno havia dez anos - faz pois uma semana que meu marido e eu
fizemos, num domingo, uma excursão, que foi a última para mim.
Radiante despontara o dia.
Eu sentia-me bem, como raras vezes. Perpassou-me, porém, um sinistro
pressentimento..
Inesperadamente, na viagem
de volta, meu marido que vinha guiando o carro, e eu ficamos ofuscados pela luz
de um automóvel que vinha em sentido contrário e com grande velocidade. Meu
marido perdeu a direção.
Jesus! Estremeci. Não como
oração, mas como grito. Sentia uma dor esmagadora por compressão - uma bagatela
em comparação com o tormento atual. Perdi então os sentidos.
Estranho! Naquele manhã
mesma, nascera-me inexplicavelmente a idéia: poderias, enfim, mais uma vez ir à
missa. Soava-me como súplica. Claro e decidido cortou meu "Não" o fio
da idéia. Com isso devo acabar definitivamente. Tomo sobre mim todas as
conseqüências. Agora as suporto.
O que aconteceu após a
minha morte, tu conheces. A sorte de meu marido, de minha mãe, do meu cadáver e
enterro, tudo te é conhecido até nos pormenores, como sei por uma intuição
natural que todos nós temos.
Do mais que acontece no
Mundo, só temos um conhecimento confuso. Mas o que nos tocava de perto
conhecemos. Assim conheço também teu paradeiro.
["As almas de falecidos
não têm seguro conhecimento de pormenores, porém apenas um enuviado
conhecimento geral da natureza material". (S. Th. Suppl. q. 98, a. 3).]
Acordei das trevas no
momento da minha morte. Vi-me de repente envolvida de luz ofuscante. Era no
mesmo lugar onde estava o meu cadáver. Aconteceu como em teatro, quando de
repente apagam as luzes, a cortina é ruidosamente removida e aparece a cena
tragicamente iluminada: a cena de minha vida.
Como num espelho, assim eu
vi minha alma. Vi as graças pisadas aos pés, desde a juventude até o último
"Não" dado a Deus.
Apossou-se de mim a
impressão como que de assassino levado ao tribunal à frente da sua vítima
inanimada. - Arrepender-me? Nunca! [S. Th. Suppl. q. 98, a. 2, r.:
"Os maus não se
arrependem propriamente dos pecados, por lhes serem afeitos maliciosamente.
Arrependem-se, porém enquanto são castigados pelas penas dos pecados".] -
Envergonhar-me? Jamais!
Entretanto nem me era
possível permanecer na vista de Deus, negado e reprovado por mim. Restava-me
uma só coisa: a fuga.
Assim como Caim fugiu do
cadáver de Abel, assim minha alma se atirou longe desse aspecto horrível.
Esse era o Juízo
particular.
O invisível juiz falou:
"Afasta-te!" Logo caiu minha alma, como uma sombra sulfúrica, no
lugar do tormento eterno.
[ "É certo que o
Inferno é um local determinado. Mas onde esse local fica situado, ninguém o
sabe."
A
eternidade das penas do Inferno é um dogma: seguramente o mais terrível de
todos. Tem suas raízes na S. Escritura. Cf. Mt. 25, 41 e 46; 2 Thess. 1, 9; Jud.
13; Apoc. 14, 11 e 20, 10; todos eles são textos irrefutáveis, em que
"eterno" não se deixa trocar e interpretar por "longo".
Se não fora conveniente
ilustrar esse dogma num caso particular, nem o próprio Nosso Senhor teria
pedido fazê-lo na parábola do rico folgazão e do pobre Lázaro. Lá fez o mesmo
que aqui vem feito: desenhou o Inferno e como se pode cair nele. Não o fez por
prazer sensacional, porém levado pela mesma intenção que ocasionou esta
publicação. A finalidade deste folheto encontra sua expressão no seguinte
conselho:
"Desçamos ao Inferno
ainda vivos, para que moribundos nele não caiamos". Este conselho dirigido
a cada um não é senão a paráfrase do salmo 54: "Descendant in infernum
viventes, videlicet, ne descendant morientes", a qual se encontra numa
obra (erradamente) atribuída a S. bernardo (Patr. Lat. Migne, vol. 184, Col.
314 b).]
Últimas informações
de Clara
"Assim finalizou a
carta de Âni sobre o Inferno. As últimas palavras eram quase ilegíveis, tão
tortas estavam as letras. Quando eu acabara de ler a última palavra, a carta
toda virou cinza.
Que é que lá ouço? Por
entre os duros acentos das linhas que eu imaginava ter lido ressoou doce som de
sino. Acordei de vez. Achei-me ainda deitada no meu quarto. A luz matinal da
aurora penetrava nele. Da igreja paroquial vinham as badaladas das ave-marias.
Pois tudo era apenas um
sonho?
Nunca eu sentira na
Saudação Angélica, tanto consolo como após esse sonho. Pausadamente fui rezando
as três ave-marias. Tornou-se-me então claro, claríssimo: ela cumpre
segurar-te, à bendita Mãe do Senhor, venerar a Maria filialmente, se não
quisesse ter a mesma sorte que te contou - ainda que em sonho - uma alma que
jamais verá Deus.
Espantada e tremendo ainda
pela visão noturna levantei-me, vesti-me depressa e fugi para a capela da casa.
O coração palpitava-me
violenta e descompassadamente. Os hóspedes, ajoelhados mais perto de mim,
olhavam-me preocupados. Talvez pensassem que, por haver eu corrido escada
abaixo, estivesse tão excitada e vermelha.
Uma bondosa dama de
Budapeste, grande sofredora, franzina como uma criança, míope, todavia
fervorosa no serviço de Deus e de longo alcance espiritual, disse-me à tarde no
jardim: "Senhorita, Nosso Senhor não quer ser servido no expresso".
Mas ela percebia então que
outra coisa me havia excitado e ainda me preocupava. Ajuntou bondosamente:
"Nada te deve angustiar - conheces o aviso de S. Teresa - nada te deve
alarmar. Tudo passa. Quem possui Deus, nada lhe falta. Só Deus basta."
Quando sussurrava isso
mesmo, sem qualquer tom de mestra, parecia-me ler na minha alma.
"Deus só basta".
Sim, Ele há de me bastar, neste e no outro mundo. Quero ali possuí-Lo um dia,
por mais sacrifícios que aqui eu tenha ainda de fazer para vencer. Não quero
cair no Inferno."
Considerações Importantes:
Os homens, criados livres como os anjos, escolhem usando seu livre arbítrio.
Nosso Senhor não deseja que nenhuma alma se perca e não é Ele, portanto quem
envia ao inferno, que é um estado de ausência de Deus. A própria alma escolhe
com determinação. Da mesma forma que muitos anjos assim escolheram. Tudo Ele
fez para a salvação. O grande mistério da encarnação, morte e ressurreição de
Cristo.... Até a última gota de sangue..... O que mais Ele poderia fazer? Deu a
própria vida! Esse mistério sobrenatural icompreensível pela natureza humana
não deixa de lançar pistas pelo mundo: o manto de Guadalupe, as grandes
apariçoes de Nossa Senhora (vide Fátima) os apelos de Nossa Senhora à conversão
da humanidade e os insistentes pedidos de oração pela conversão dos pecadores e
pelas almas dos que estão no purgatório. O valor de cada alma......Vale um Deus
crucificado! Que grande mistério. A fé é graça, mas quanto mais nos voltarmos a
Deus com uma simples oração, Ele volta-se também na nossa direção e vai
atraindo-nos com seu amor. Amor correspondido.
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